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Movimentos sociais, política partidária e identidades



 

A marcante onda de manifestações, que ocorreu em junho e julho no país e virou pauta principal entre a população e os veículos da grande mídia, trouxe mudanças e questionamentos sobre o funcionamento dos sistemas político e social no Brasil. Em entrevista, o professor do Departamento de Filosofia, Ronai Pires da Rocha, faz uma reflexão sobre os desdobramentos das manifestações no país.

Guilherme Gabbi – Como você vê essa onda de manifestações no país?

Ronai Pires da Rocha – O grande ponto de partida é considerar que tudo isso é muito complexo. Não há como descrever tudo em duas ou três frases. Em algumas das minhas aulas, faço uma análise: existe um grupo de brasileiros que está sendo incorporado num processo de vida e consumo, classes médias e medianas, C e D. E, nós teríamos que compreender o que está havendo nesse segmento que tem ligação com as manifestações. Hoje, temos de 40 a 60 milhões de pessoas nessa classe, que tem expectativas de qualidade de vida, que foram prometidas pelo tipo de governo que tivemos nos últimos 15 anos. Essas pessoas percebem que as coisas não estão caminhando na velocidade que eles acham que seria a adequada. São coisas sutis: existem escolas com bastantes vagas, mas a qualidade de ensino é ruim e não há condição para matricular um filho em uma escola particular, por exemplo. Qualidade de vida e transporte também se aderem a isso. Uma coisa que estava acomodada no país mexeu-se nos últimos 10, 15 anos. Juntamente a isso, tem-se a ideia de que a qualidade da representação política deixa a desejar cada vez mais. A sensação de impunidade, presença de corrupção e os escândalos incitam indignação e certa vergonha na forma da representação. Vejo uma espécie de convergência de fatores, que geram toda a indignação.

Para tanto, tem-se que ter cuidado para fazer uma analise sociológica e econômica sobre isso, sobre as gerações que estão chegando e querem participar de todo esse movimento. A análise sociológica tem complemento de dimensão em natureza política, quando se pergunta o que se fazer com a indignação. Todos os processos têm ligação com aspectos psicossociais, envolvendo a forma como agimos com os sentimentos em relação a ações políticas. Até então, tudo parecia ir muito bem, pois alguns partidos se apropriam da ideia de representação. Isso tudo começa a entrar em crise desde que mudanças políticas seguidas por propostas começam a surgir.

Existe outro fenômeno que analisa como esses grupos novos se ligam. Em filosofia política, costuma-se ter uma análise muito limitada que se resume em: uma sociedade com indivíduos, esses se relacionam entre si, como átomos sociais, fazendo pactos. E assim, surge uma sociedade política. Hoje, essa concepção não dá conta da complexidade na sociedade e nas relações. Essa análise mecanicista acaba por ser superficial. As pessoas são complexas, elas “estão sendo” algo, não “são” algo fixo. Hoje não se tem o jovem minuciosamente esculpido e definido em maioria, há o processo de “estar sendo”. Estamos passando por um momento que um movimento com certa espontaneidade está surgindo. Uma imensa quantidade de estudantes de ensino médio, por exemplo, estão nas manifestações porque ninguém aguenta ser estúpido ou idiota sempre. Eles são acusados disso, mas eles não são alienados, não são idiotas, são pessoas cuja disposição para sair à rua e fazer algo opera em uma faixa delicada e sensível. Uma bandeira de partido não fará com que eles saiam, eles sabem que daí vem palavras de ordem, e isso repudia eles de certa forma.

Outro ponto importante é a relação existente entre o consumo e a cidadania de cada um. Para isso aconselho um livro muito interessante, chamado “De consumidor a cidadão”, de Alberto O. Hirschman. Nele, o autor traça o paralelo entre o individual consumo e a presença da prática de cidadania. Com base em seu estudo, é errado analisar e chegar a conclusão de que consumo e consumismo são sinônimos. Oscilamos entre dois polos: individual e coletivo. Consumo e cidadão político. Dentro do processo de consumo tem-se o estímulo pela cidadania. Por exemplo, compra-se algo e esse está com algum defeito ou problema. O consumidor irá reclamar e pedir algum tipo de conserto. É o que ocorre com os grandes serviços públicos, dos quais compramos, mas não estamos satisfeitos, como é o caso do SUS ou da educação pública.

Combine tudo isso com uma gurizada que tem acesso à rede, possui smartphones, que tem relacionamento horizontal e não vertical baseado em sistemas de partidos, que presencia uma presidente mais retraída midiaticamente, e você tem as condições para os estopins, como o da passagem, os que estão relacionados ao mensalão, por exemplo. Não se pede uma constituinte para uma reforma política, isso é a solução que o governo achou. O furo de tudo é mais profundo, a crítica principal está relacionada aos grandes sistemas de serviço público e em relação aos partidos. Esse apartidarismo não representa alienação nem pensamento facista, mas sim uma crítica contra o movimento partidário ineficiente.

G. G. – Então a questão do apartidarismo é uma crítica ao sistema de partidos no país?

R. R. – Exatamente. Na percepção dessas pessoas os partidos sofrem de uma série de males. Um deles é que “eles já sabem de tudo”, mas as bandeiras que têm não contemplam o pensamento de todos. Não vejo que a mensagem é acabar com os partidos. Cria-se o momento do apelo para que, por um momento, sejamos uma nação, um povo. O que gera o pensamento de facismo. Mas não é isso, o apelo que se tem é uma crítica ao todo. A bandeira nacional é aquilo que parece nos unir como um só, que liga partes comuns para o movimento. Até a mais fantástica esquerda que se possa imaginar é conservadora. Eles parecem saber de tudo.

G. G. – Qual a leitura que você faz em relação aos movimentos sociais dentro dessa onda de manifestações?

R. R. – Diria o seguinte: os movimentos formam um amplo leque, desde a Marcha das Vadias aqui na cidade até as bandeiras que tratam do assunto da cura gay. Questionaria sobre a movimentação dos movimentos sociais. À medida que os movimentos se movimentam e o ponto de partida não é a clareza evidente e brutal sobre o futuro, mas sim de uma clareza evidente e brutal de que oportunidades de crescimento, acesso, participação são restritas e não têm a plenitude que deveriam ter. Aí, estamos falando e um movimento social com o mínimo de capacidade de interação com o futuro, com alternativas viáveis. Não se tem o modelo pronto de bolso, que caracteriza um movimento social que tende a sofrer mais nesse momento. Hoje, as coisas têm que ter certa capacidade de aceitação das pessoas ao teu lado em função da conquista de um ou outro patamar de visibilidade para as demandas sociais. Os movimentos sociais que têm a capacidade de entender que estar ao lado de um empresário, por exemplo, é, nesse momento, algo que faz parte do jogo para que se chegue a outro patamar de exigências de comportamentos daquilo que se entende por um sistema democrático, de transparência, combate a corrupção, que são coisas importantes para todo mundo, acabam se saindo bem. Outro lado é estar num movimento social de espinha dura, que não se flexibiliza e não aprende nada com o que está acontecendo. O tipo de bandeira geral (nação como todo) já impõe certo acordo em determinado momento.

Devem-se pensar como essas diversas pressões espontâneas vão se comportar. Os movimentos sociais devem pensar em como se comportarão. Aí que eu penso que o próximo lance é saber em que medida os partidos políticos declarados de esquerda vão aprender algo com tudo isso? Um processo que acho ser muito difícil. Enfim, acho bem complicado, quando se trata de movimentos sociais. Uma análise deveria se orientar por uma descrição adequada para essa diversidade de movimentos sociais, pois cada um tem características bem especiais.

G. G. – Uma suposta falta de liderança pode ser notada em momentos das manifestações. Como você acha que isso configura ou interfere nos diversos pedidos presentes nas ondas de manifestações?

R. R. – Isso é o grande diferencial em relação aos grandes movimentos que levaram muitas pessoas as ruas. Como no “Fora Collor”, nas “Diretas Já”. Esse movimento atual, no começo, não pode ser citado com falta de liderança. As mobilizações de Porto Alegre eram muito fortes no sentido das passagens e tinham presente liderança. O que provavelmente aconteceu é que começa a surgir um clima que propicia uma prática de cidadania, em que cada um tem a sua bandeirinha e quer exercer essa prática. Nenhum de nós abre mão de certa lealdade de sermos do mesmo país, mas de que forma vou me manifestar? Do meu modo. Por isso, essa espécie de salada, onde cada um pede algo, numa espécie de grande celebração cívica.

Por exemplo, o conceito grego de vida privada é uma vida idiota, uma vida que tu fazes a partir de tuas pequenas percepções, e ninguém vive muito tempo sem se incomodar com isso. A dúvida do que fazer pelos outros se evidencia uma hora ou outra. Então, subitamente, tu faz esse exercício. Daí, a partir de coisas que tinham objetivos definidos (início dos movimentos), tem-se uma agregada geral de pedidos, onde está presente um certo aproveitamento e impulso para ir à rua, afinal, o fato de ir à rua é algo de tremendo valor simbólico.

Surge com isso a seguinte questão: como que isso vai se encaminhando? Eu imagino que tudo é um grande jogo que vai depender dos próximos lances e atitudes governamentais. Dependendo do que acontecer, novas ondas de protestos surgirão.

G. G. – Você acha que tudo isso caracteriza que as massas ascenderam ou acha que tudo ainda é um processo?

R. R. – Acredito que seja um processo ainda. Esse conceito “massas” é algo que eu gostaria de discutir, pensar mais sobre. O que quer me dizer com massa?  A noção de massa pode ser dada para um esquema de massa com algo relacionado a um processo revolucionário, e quando usa-se a palavra revolucionário, o que quer dizer com isso? Especialmente, se estiver imaginando algum tipo de processo que leva a algum tipo de ruptura mais ou menos significativa. Uma das minhas broncas com quem faz análise política de esquerda é a ideia de que a gente está muito marcado por modelos de análise em que se sonha em modelos de ruptura relativamente assinalados. Movimentos sociais do século XVIII, por exemplo, tinham alvo preciso, que era a questão de direitos civis, igualdade como seres humanos. A seguir, se todos somos cidadãos, surge outro tipo de demanda, que é a de ter direitos políticos, que também tem alvo preciso. Atualmente, tem-se uma terceira onda de direitos, que visa direitos sociais. Não está em discussão reconquistar direitos civis, políticos. O que está em discussão é como construir direitos sociais de forma segura, expansiva, incorporador em um país onde a classe política é ineficiente e atrasada.

Nesse sentido, eu tenho certa resistência na ideia de “estamos tendo crise na representação política”. A crise de representação política surge no dia em que o voto é implantado e tem o mesmo peso. Para cada trabalhador engajado, tem-se um trabalhador alienado que acaba amenizando a insatisfação de quem se engaja. No voto, tem-se a amenização da representação, pois o sistema de representação do voto não dá conta disso. Por isso, a presença de muitos movimentos para potencialização da voz. Surge a dúvida de “quem está conseguindo potencializar a minha voz?”. O que se discute é que nesse processo de terceira onda de direitos (sociais), têm-se grupos que brigam por direitos sociais interessantes, por valores ambientais e afins que não tem sua voz devidamente amplificada.

G. G. – Como você vê a questão de nós como um todo e nós como “um individual”? Por exemplo, da amplificação das vozes individuais e a representação disso como um todo.

R. R. – Então, para dar conta disso, vemos a bandeira brasileira, povo, falamos a mesma língua, temos tradição em comum. Tem-se o refúgio nisso, como um fundo de reserva para que haja essa identidade comum. Em contraponto a isso, identidade como indivíduo não consegue se formar. Nós precisamos do que os sociólogos chamam de processo de pertencimento. Esse processo totalmente genérico de nação brasileira não resolve. Como se dá o processo de pertencimento para que haja visão da sua identidade? Como se resolve a questão de identidade? É aí que temos que pensar.

Foto: Luciele Oliveira – Acadêmica de Jornalismo.

Repórter: Guilherme Gabbi – Acadêmico de Jornalismo.

Edição: Lucas Durr Missau.

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