“O governo de Javier Milei sofre de problemas autoinfligidos”. É o que constata a professora Virgínia Vecchioli, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria, ao analisar a situação política do atual mandatário da Argentina. A docente está em Buenos Aires para realização de pós-doutorado pela Universidad Nacional de San Martin e para redação do livro “Memórias desconfortáveis em tempos urgentes”, que será publicado pela editora Planeta.
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora de temas ligados à memória, a professora conversou com a Agência de Notícias sobre questões políticas, econômicas e sociais que ajudam a entender a complexidade do momento atual da Argentina.
Após as medidas de austeridade fiscal e retirada de direitos para controlar a inflação, o país platino quase entrou em colapso econômico. O dólar chegou a cotação de $ 1515 pesos. O risco-país, indicador de confiança elaborado pela JP Morgan, aumentou para 1400 pontos e provocou o afastamento de investidores.
Para evitar a quebra da economia do aliado sul-americano, o republicano Donald Trump prometeu um empréstimo na ordem de US$ 4 bilhões. Somente o anúncio já acalmou o mercado argentino. Em visita à Casa Branca, nesta terça (14), Milei conseguiu com que os Estados Unidos aumentassem a oferta para US$ 20 bilhões. O montante está condicionado à vitória nas eleições do dia 26 deste mês, voltadas à escolha de representantes para o Parlamento Nacional.
Aí reside outro problema, pois o partido do ultraliberal, o Libertad Avanza, perdeu apoio dos governadores que o ajudaram a chegar à Casa Rosada e foi derrotado na Província de Buenos Aires. Além disso, o governo sofre com denúncias de corrupção, é alvo de manifestações e está em queda de popularidade.
O quadro geral complexo, para a professora Virginia, precisa ser analisado para além do viés polarizado, dicotômico. Assim, ela aconselha que o leitor não fique restrito a mídias pró-Milei, como La Nación, que adotam uma postura acrítica, e nem a veículos mais combativos como Pagina 12, que pintam um quadro pior do que a realidade.
“Eu tenho um interesse particular, não só porque sou cidadã argentina, mas por considerar um grande enigma entender como uma população passou 16 anos votando no kirchnerismo, que seria algo semelhante ao PT, e depois votou numa extrema direita radical sem apoio da classe militar. Não tem nada a ver com o governo Bolsonaro, que teve apoio militar”, pondera.
Pontos positivos: indicadores macroeconômicos
Antes da ameaça de colapso financeiro, a Argentina parecia viver um momento diferente no aspecto macroeconômico. Os indicadores do primeiro semestre de 2025, na avaliação da professora Virginia, mostram uma recuperação: superávit fiscal e financeiro, queda do risco-país, aumento do PIB para 6,3%, elevação da produção industrial para 7,1% e crescimento das exportações de bens e serviços para 7,7%.
A inflação apresentou uma forte queda: de 270% ao ano no final do governo anterior chegou a 33,6% no acumulado de 2025. Houve um aumento real nos programas assistenciais, como a Asignación Universal por Hijo (AUH), semelhante ao Bolsa Família, e concedida a cada filho menor de 18 anos para famílias desempregadas. “O valor cobria 55% da Cesta Básica em dezembro de 2023 e passou a 98% em agosto de 2024”, compara. Além disso, como constata a pesquisadora, ocorreram incrementos em outros planos assistenciais voltados aos estudantes e gestantes.
“Os primeiros indicadores econômicos do governo Milei foram muito ruins. Muito por efeito do arrasto do governo anterior. No final do governo peronista, a pobreza era de 41%. Nos três primeiros meses de Milei, chegou a 52,9%”, observa. Embora parte da imprensa tenha atribuído a situação dramática ao atual presidente, a professora da UFSM enfatiza: “Esse índice não é responsabilidade do governo atual, pois foram apenas três meses no comando. Porém, no segundo semestre de 2024, a pobreza caiu para 38%”. A projeção do Ministério do Capital Humano para o primeiro trimestre de 2025 é que fique em 31,7%. “Hoje em dia os níveis de pobreza são equivalentes aos de 2019, ou seja, antes da pandemia. Os piores índices de pobreza ocorreram no governo de Alberto Fernández”, ressalta.
Pontos negativos: aumento do custo de vida e queda do poder aquisitivo
A redução dos custos do Estado provocou a retirada ou a diminuição de subsídios para manutenção do transporte, do gás e da energia elétrica. Com isso, houve um aumento real dos custos para as famílias. Aliado a isso, os salários dos trabalhadores não acompanharam a inflação.O índice de aumento dos salários, quando ocorre, situa-se entre 1% e 1,5%. Assim, mesmo com a queda significativa da inflação, o poder de compra do argentino parece muito menor agora.
“Existem dois problemas: o aumento exponencial dos custos básicos de cada família e a perda do poder aquisitivo do salário. Até mesmo as pessoas com trabalho e carteira assinada não conseguem pagar as contas. O salário não chega ao final de mês”, evidencia. A situação é considerada pior para os pequenos empreendedores e para os trabalhadores informais.
O endividamento aumentou e o desemprego está em 7,6% – no início do ano era ainda maior: 7,9%. Em consequência, notam-se mudanças de comportamento e de hábitos. “As lojas estão fechadas e os restaurantes, vazios. Comer no restaurante hoje é um luxo”, observa.
A professora Virgínia sintetiza: “Se em 2023, as pessoas passaram do desespero à esperança, agora, em 2025, passaram da esperança à desilusão”.
Erros estratégicos de Milei
A política de austeridade e a retirada de subsídios não são os únicos pontos polêmicos. No entendimento da professora Virgínia Vecchioli, Milei cometeu erros estratégicos que culminaram na perda de aliados, de apoio popular e na derrota nas eleições para a província de Buenos Aires em setembro. Os “erros autoinfligidos”, como destaca a pesquisadora, tem como pivôs o presidente e de sua irmã, Karina Milei, secretária geral de governo e chamada pelo próprio mandatário argentino de “O chefe”.
O ultraliberal negou incrementos de recursos destinados a pessoas com deficiência e a estudantes. Tais questões tiveram reação muito negativa na opinião pública e mobilizaram manifestações nas ruas. “É um erro barganhar assuntos muito sensíveis para a população e completamente irrelevantes do ponto de vista econômico”, pondera. A desaprovação do governo chegou ao número mais alto desde então: 51,1%, segundo pesquisa da Atlas Intel e da Bloomberg de agosto. “A população leu isso da pior forma, porque a promessa foi: o custo das medidas econômicas é a casta política que vai pagar. Mas agora fica bem claro que o custo é a gente que está pagando, não a casta política”, contata.
Para piorar a situação, duas semanas antes das eleições provinciais, áudios vazados citam Karina e seu braço direito, Eduardo ‘Lule’ Menem, na cobrança de até 8% de propina da indústria farmacêutica para que governo firmasse acordos para a aquisição de medicamentos para a rede pública. As investigações da Justiça Federal apontam que a secretária geral seria a principal beneficiária do esquema milionário. O Parlamento pode abrir uma CPI sobre o tema.
Outro caso é o lobby da criptomoeda $Libra. Após mensagens de Javier Milei no X, antigo Twitter, 40 mil investidores apostaram no ativo e perderam dinheiro com a flutuação da criptomoeda, que ao final do dia não valia mais nada. O golpe está em investigação na Argentina e nos Estados Unidos.
Ainda, os irmãos Milei evitaram alianças para as eleições provinciais de Buenos Aires, que representam 39% do padrão eleitoral e historicamente são ganhas por candidatos associados ao peronismo. “Ao invés de fazer alianças com governadores que apoiaram as medidas no Parlamento Nacional através dos seus deputados e senadores, criaram um outro concorrente eleitoral com o Libertad Avanza”, observa. Os governadores das províncias, que fazem oposição ao kirchnerismo, acabaram se unindo em nome do peronismo e conseguiram derrotar o ultraliberal em todo o interior do país.
“Essas eleições são fascinantes, porque La Libertad Avanza passou de 24%, em 2023, para 33,8%, em 2025. Mesmo com aumento do percentual de votos, perdeu as eleições. Em 2023, quando Milei ganhou a presidência, ele tinha perdido por 20% de diferença. É uma derrota com nuances”, compara. Em números absolutos, o atual governo perdeu 2 milhões de eleitores, mesmo número de abstenções. Por mais que Alex Kicillof, da frente peronista Fuerza Patria, tenha vencido com 47,12% dos votos válidos, no entendimento da pesquisora quem realmente se destacou foi o volume de abtenções. É um indicativo do desinteresse do cidadão argentino pelo processo eleitoral.
Segundo a professora, as eleições deste ano funcionam como um plebiscito ao indicar se o atual mandatário pode ou não concorrer à reeleição. Por isso, o futuro do atual governo depende e muito do resultado do próximo dia 26.
Texto: Maurício Dias
Arte: Daniel Michelon De Carli
Fotografia: Bloomberg/Reprodução